sexta-feira, 13 de junho de 2014

Carta nunca lida de um escritor bêbado

  Me lembro de você todas as madrugadas, quando olho para o lado vazio que costumava ser a tua parte da cama, do lado da janela; pois você nunca cansou de reclamar do fedor do meu cigarro antes de dormir, precisava abrir a maldita janela. Me lembro de você pela manhã, quando levanto e o café não está na mesa, apenas as minha guimbas e uma ou duas garrafas vazias, lembranças da noite passada em claro. Você sempre me alertava sobre o perigo de trocar o leite morno matutino pelo brandy ameno que despertava minha corrente sanguínea.
  Recordo como se fosse ontem o dia que uma garrafa de gim minha se quebrou no assoalho do teu carro novo. Você xingou e praguejou todas as gerações passadas e futuras da minha família, enquanto eu lamentava cada miligrama perdida daquele elixir alcoólico. Você me esbofeteou e eu comecei a levantar tua blusa e acarinhei tua barriguinha bastante saliente. Transamos ali mesmo. Senti o cheiro do gim nos teus cabelos durante dias e dias.
  Esse mesmo carro tive que vender pra pagar o empréstimo do banco e limpar meu nome que a cambalacheira da tua mãe sujou. Mas eu nem o usava mais, a gasolina está os olhos da cara e eu não estou aqui para sustentar merda de governo nenhum.
  Me lembro de você defendendo o governo. Dizia que o governo nada tinha a ver com o aumento no preço do cigarro e da bebida. E eu te dizia: " Se o governo não tem nada a ver com essa patifaria, quem tem? Dionísio?
  Você defendia muita gente, eu me lembro. Me defendia quando a tua mãe me chamava de bêbado. Defendia o nosso filho quando ele apanhava no colégio. ( Nosso garoto hoje é homem feito, quase dois metros de altura, magrinho, tadinho. Anda nessa moda de só comer mato, é vegetariano, coitado. Diz que verdura faz bem à saúde; replico que sexo é que faz bem à saúde, ele ri ).
  Nunca mais publiquei um livro sequer desde que você foi embora. Não tenho paciência nem ânimo pra bater à máquina ideias sem razão, como esta carta, que você nunca lerá. Tenho passado meus dias a fio, embora você não tenha perguntado. Vez ou outra o Quincas vem aqui jogar truco, mas ultimamente ele anda com umas ideias tão bestas que dá dó, nem dá vontade de mandá-lo entrar, nem de jogar. Jogo besta!
  Pois é. Quem sabe um dia esbarro contigo pelas esquinas da vida. Eu não mudei nada, eu acho. Não se esqueça de me chamar quando topar comigo.
  Posso não lhe reconhecer mais.







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