domingo, 11 de janeiro de 2015

De Volta ao Começo

 Para qualquer um que a visse, era só mais um chalé abandonado, precisando ser demolido para ceder lugar a um prédio enorme, ou a mais um supermercado. Mas para mim, não.
     Faz muito tempo desde a última vez em que pisei aquele soalho impregnado de histórias, boas e más. Já faz muitos anos que os muros que cercam aquela velha casa não têm portões, só uma parede inteira de concreto cheia de cartazes e pichações.
     Há uma semana recebi uma proposta de compra do terreno. Até que é uma boa proposta, tirar-me-ia do sufoco em que vivo desde que resolvi sair de casa, para tentar a vida junto de minha namorada, que logo viria a ser minha esposa. Minha filha, Marina, morreu poucas horas depois de ver a luz. Seus pumõezinhos nasceram com uma grave deficiência que a impedia de respirar. Minha esposa, Gabriela, foi junto logo após.
     Cinquenta anos já se passaram desde então.
     Hoje, tenho 85 anos e estou aqui, na mesma rua onde aprendi a andar de bicicleta, em frente ao muro onde dei meu primeiro beijo na Gabriela.
     Quando finalmente meu funcionário derruba uma parte do muro, peço que deixe-me entrar sozinho por alguns minutos. Quero rever o que restou da minha memória. Os móveis da sala, corroídos pelos cupins, a lareira coberta de teias de aranha. Sinto que as aranhas dominaram a casa, estão por toda parte. O gramofone, onde meu pai tocava seus discos de ópera,no mesmo lugar onde fora deixado há décadas, ainda com o último disco. Tudo parece estar parado no tempo, é como se meus pais fossem sair a qualquer momento de algum canto da casa, lembrando que o almoço estava servido. Num instante, ouço meu pai ao meu lado:
     -Pensei que nunca mais voltarias, meu piá.
     Dou meia volta e vejo sua figura colossal, de mãos enormes, a segurar meu ombro. Meu velho pai.
     -Pai... Como é que...
     -Não te importes com isto agora. Não te importes com nada. Tu já ultrapassaste as minhas 62 primaveras... sabes mais do que eu quando é hora de parar e refletir. Subas. Sejas bem-vindo de volta.
     Viro-me para olhar a porta, e quando olho de volta, meu pai já não está mais lá. Ao subir, o ranger da escada faz uma analogia perfeita com o ranger dos dentes de minha esposa ao morrer. Sempre fui perseguido por analogias.
     Já no sótão, encaro os restos de minha infância: meus cadernos, nos quais confidenciava minhas desventuras de jovem isolado. Hoje, não passam de palavras soltas no alçapão, perderam seu significado, o sentido de estarem perpetuadas naquelas folhas amareladas. Quem as escreveu já morreu há muito tempo.
     Choro, choro muito, pelos meus pais, por minha filha, por mim mesmo, que nada mais sou do que um erro.


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